De seguir a si mesma
Escrito por Simone Paulino em 10 de dezembro de 2015
“Eu antes tinha querido ser os outros, para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros. E o outro dos outros era eu”.
(Para Não Esquecer)
A singularidade de Clarice e de sua literatura está em grande parte na coragem que ela teve de se deixar levar por suas sensações e escrever sobre elas. Ir até onde nós simples mortais não ousamos ir, tirando de si e das coisas as camadas superficiais ali depositadas, até chegar ao que verdadeiramente é. Por isso, causa às vezes um certo desconforto. Por isso, propõe perguntas que nos tiram o chão: “Você de vez em quando não se espanta de ser você”? Mas se os seus questionamentos abalam o cego conforto em que vivemos, nos oferecem em contrapartida infinitas possibilidades, vislumbres do essencial que buscamos. Aquilo que alguns chamam de “epifania”. Momentos de puro encontro de nós com nós mesmos. Instantes em que, sob a máscara da artificialidade já quase aderida ao rosto, vemos surgir uma centelha de “eu”. Uma breve luminescência do que idealmente poderíamos ser.
Outras vezes, ao estar em contato com os personagens de Clarice, no convívio íntimo com eles, vamos aos poucos redesenhando no nosso rosto traços desfigurados pelo tempo. Não raro, surgem aspectos do alguém que já fomos um dia e de quem nos distanciamos sem perceber. Reencontros necessários e bons, que fazem a história de nossas vidas ganhar sentido e beleza.
Não foram poucas as vezes que eu me redescobri a própria Macabéa. A datilógrafa solitária em seu quarto de pensão, imaginando o que era a vida pelo que lhe contavam no radinho de pilha. E que ternura passei a sentir por mim e pelos dias difíceis que me fizeram ser quem hoje eu sou. Ternura por mim, sim. Pelo mim que eu era naquilo em que me parecia com ela. E tive tanta saudade daquilo que fui! Como quem visita a casa da infância e se surpreende com as dimensões apequenadas do que antes parecia imensurável e sente uma emoção velha e boa. Eu era Macabéa e ela era eu.
Nesse espelhamento inesperado, fui descobrindo aos poucos que assim como a personagem de Clarice, durante boa parte da minha vida eu “não sabia que era infeliz” e isso era bom. Pois só a ignorância da infelicidade me permitiu como ela “carregar em costas de formiga um grão de açúcar” e dele me valer nos trechos mais amargos da travessia.
Entre todos os outros que a literatura me permitiu ser ao longo da minha vida, foi em Macabéa que encontrei o melhor de mim. Na sua grande fome de vida, jamais saciada. Nos seus desejos, nunca plenamente articulados. Na sua precária capacidade de interpretar o mundo hostil que a rodeava. E, sobretudo, na sua insuficiência absoluta para se opor à força tantas vezes devastadora do seu destino.
É por isso que afirmo com tanta convicção que ler Clarice Lispector pode mudar nossa vida. Porque Clarice abre nossas feridas sim, mas depois de estar em carne viva, ganhamos uma paz desconhecida, às vezes nunca experimentada, de quem se reencontrou consigo mesma e pode assim caminhar com um pouco mais de segurança pela vida, sendo protagonista de sua própria história e dizendo em alto e bom som: eu sou eu.
Simone Paulino é jornalista e editora. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, é autora, entre outros, de Abraços Negados (contos, Casa do Psicólogo- 2005) e do infantil O Sonho Secreto de Alice (Editora DSOP – 2013). Participou também das Antologias de Histórias Femininas (Scipione – 2011) e Contos Grafias Urbanas (Scipione – 2010). No momento, está às voltas com a escrita do seu primeiro romance. Publica aqui o fragmento de um livro sobre Clarice.
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Entrevista com Clarice Lispector