Olavo Bilac, fala de Carlos Gomes, um gênio da música

Carlos Gomes no Teatro alla Scalla

Carlos Gomes no Museu do Teatro Alla Scalla de Milão.   Carlos Gomes destacou-se pelo estilo romântico, foi o primeiro compositor brasileiro a ter suas obras apresentadas no Teatro alla Scalla. É o autor da ópera O Guarani.

O grande poeta parnasiano, Olavo Bilac, fala de Carlos Gomes, um gênio da música

Posted by José Flávio Santos de Carvalho

Olha estas velhas árvores, mais belas

Do que as árvores moças, mais amigas,

Tanto mais belas quanto mais antigas,

Vencedoras da idade e das procelas…

O homem, a fera e o inseto, à sombra delas

Vivem, livres da fome e de fadigas:

E em seus galhos abrigam-se as cantigas

E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!

Envelheçamos rindo. Envelheçamos

Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória de alegria e da bondade,

Agasalhando os pássaros nos ramos,

Dando sombra e consolo aos que padecem”!

(Velhas Árvores, poema de Olavo Bilac)

Este ano, completou-se 118 anos da morte do grande compositor, Carlos Gomes, nascido em Campinas, no dia 11 de julho de 1836, e cuja alma se elevou aos céus no dia 16 de setembro de 1896. Domingo passado estive, juntamente com o Coral PIO XI, aos pés do monumento-túmulo, no centro de Campinas, participando das homenagens a esse grande compositor.

Minha ideia primeira era escrever apenas um texto sobre o evento, mas navegando nos vastos mares da Internet, acabei por me deparar com uma crônica do grande poeta parnasiano, Olavo Bilac. Definiria o presente escrito como um mestre da palavra, falando a respeito de um mestre da música. Escrito no dia em que se inaugurava aquele monumento-túmulo, no qual o PIO XI fez sua apresentação musical, Bilac, fala de passagens difíceis da vida do maestro. Revelações essas advindas de cartas a ele confiadas, mesmo que por algumas horas, por Manoel Guimarães, grande amigo de Carlos Gomes e com qual ele mantinha contatos frequentes, através de cartas.

A crônica foi publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 02 de julho de 1905. Cheguei a ela, através do Blog do Braga, cujo autor é Francisco José dos Santos Braga.
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Crônica de Olavo Bilac: CARLOS GOMES

“Inaugura-se hoje, em Campinas, a estátua de Carlos Gomes.  Haverá, decerto, muitas flores, muita música, muitos discursos. De todos os pontos do Brasil, chegarão telegramas, em que palpitará o entusiasmo nacional. Os noticiaristas rebuscarão, para descrever a festa, os seus mais belos adjetivos; os poetas, com as tiorbas engrinaldadas de rosas e de laços de fitas, cantarão os seus hinos mais arden­tes; e, no meio desse transbordar de louvores e desse ferver de elogios, não haverá talvez quem pense no que foi a vida desse homem, que, depois de morto, tanto carinho, tanta admiração, e tanta homenagem merece…

Não podendo ir a Campinas, e querendo associar-me à glorificação do artista — preferi escrever alguma cousa sobre o que ele sofreu enquanto vivo. Projetei narrar alguns episódios da sua existência, e relembrar algumas das con­versas que com ele tive nas ruas, nos teatros, ou em casas amigas, entre paredes discretas… Mas o Acaso quis que um homem (que foi o maior, o mais dedicado, o mais cons­tante amigo de Carlos Gomes) me confiasse por algumas horas todas as cartas que recebera do autor do Guarani. Passei uma noite a folhear essas cartas — e reconheci que a exumação de todas as minhas recordações pessoais não valeria, como comentário digno da festa de hoje, um sim­ples resumo desta documentação fiel, espontânea, sincera, com que o próprio maestro comentou a sua vida, e que o seu amigo conserva como uma relíquia preciosa e sagrada.

O proprietário das cartas é o sr. Manuel Guimarães.

Uma amizade inalterável ligou em vida estes dois homens. O amigo, que ficou, não fala do amigo morto, sem que uma nuvem de saudade lhe tolde o olhar.

Todas as cartas são inéditas — e todas são interessan­tíssimas. Mas aproveitarei somente um volume da correspondência: e desse volume extrairei algumas das lágrimas de desespero, de dor, e de desengano, que Carlos Gomes chorou no seio do seu melhor confidente.

São doze anos de correspondência íntima e afetuosa; e são justamente os doze anos mais agitados, mais tumultuosos, mais torturados, mais vividos da vida do maestro.

A primeira carta é de Lecco (Lombardia), e tem a data de 26 de abril de 1884; a última é de Milão, e foi escrita em 18 de março de 1896 — quando Carlos Gomes, já com a boca devorada pelo carcinoma que o matou, se dispunha a partir para o Pará, onde vinha tomar posse do cargo de diretor do conservatório de música.

O que dá valor a estas cartas é o seu tom de absoluta sinceridade. Quem conheceu Carlos Gomes, sabe que nunca houve no mundo um homem mais simples, mais ingênuo, mais inocente. Ele próprio dizia: “Haverá alguém que possa odiar este pobre caboclo de Campinas?…”.

Artistas há que, ainda quando estão escrevendo a ami­gos íntimos, têm a “preocupação da posteridade”, e esco­lhem as suas frases, e velam os seus pensamentos, com a mira no “efeito”; já alguém disse que alguns homens céle­bres, até quando dormem, têm a atitude de quem está diante da máquina de um fotógrafo… Carlos Gomes não conhecia essas atitudes estudadas. Quando falava, em público ou na intimidade, falava como um caipira, com o coração à flor dos lábios; e, quando escrevia, escrevia tão naturalmente, que alguns trechos da sua correspondência não podem ser publicados, ou pelo desalinho e incorreção da frase, ou pela crueza da expressão…

Que vida agoniada, inquieta, sobressaltada, foi a deste glorificado de hoje — numa perpétua luta com os editores, com os empresários, com os cantores, e com os credores!

Já a primeira carta (1884) é um grito de angústia: “Não repare se lhe escrevo às carreiras, e, ainda mais, com demora. Tenho sofrido ultimamente contínuos desgostos, e de tal natureza que me paralisam os sentidos. Por minha parte, nada espero do futuro, porque sou muito caipira, e não posso ser adulador…“. E daí por diante, não cessa o caiporismo…

Dizia-se que Carlos Gomes esbanjava o dinheiro — e até que jogava. Todos os seus amigos sabem que o pobre nunca pôs a mão num baralho de cartas… E, quanto ao esbanjamento do dinheiro — como pode esbanjá-lo quem somente o ganha em porções mirradas c contadas? E não teria o direito de ganhar muito dinheiro e de gastar muito dinheiro, o homem que, pelo seu talento e pelo seu trabalho, tanto honrou e elevou o nome do Brasil?… Mas, não! Pela leitura da sua correspondência, vê-se bem que as quan­tias que lhe passavam pelas mãos, mal lhe bastavam para viver com decência, e para educar os filhos. Em 1889, o maestro veio com uma companhia lírica ao Brasil, levou-a por sua conta a São Paulo — e voltou de lá endividado. Em 1890 (carta de 19 de outubro), depois de um ano de negociações, vendeu, a uma certa casa editora daqui, a pro­priedade de onze peças de música, por 350$000! A carta é dolorosa: “Aceito, enfim, a proposta da casa X porque a força maior a isso me obriga… Eles todos, desde O Guarani até O Escravo, ganham dinheiro, e riem do pobre autor… É inútil repetir-te que fico aqui esperando a quantia em fran­cos o mais breve possível, pois sabes que vivo no inferno das necessidades, e sustentando a aparência de indepen­dente. Oh! Que luta, que luta, meu amigo!”. Mas não haveria aqui espaço bastante, para conter a narração dessas explorações de editores…

Em 1891 (carta de 3 de abril) Carlos Gomes vem de novo ao Brasil, com o empresário D, que deve montar algumas das suas óperas: “A patifaria de D chegou ao ponto de ter partido daqui (Milão) sem me garantir a passagem no vapor Europa a 14 do corrente. Não me chegando o adiantamento que ele me fez, tive de pôr no prego a lira com que presenteaste a Ítala. E, assim mesmo, não sei se poderei partir!…“. Voltando à Europa, nesse mesmo ano — depois de ver fracassado o plano de direção de um teatro, com que o embalaram e enganaram — o maestro deixara aqui, com o seu amigo, algumas jóias. Mandou buscá-las depois, e, assim que as recebeu, empenhou-as: “Não sei como te agradeça [carta de 12 de junho de 1802] o cuidado que tiveste em remeter as jóias, que já estão depositadas no Mont de Pieté, pela quantia de 810 francos. As despesas extraordinárias, o resgate, do Condor, o seguro dos meninos, a copiatum do Colombo, me obrigaram a isso. Coragem, Gomes! Tenho certa esperança de obter qualquer cousa em Chicago!…“.

Oh! esta famosa viagem a Chicago!… mais de um ano de pedidos, de promessas, de desculpas, de demoras de pagamento — e, depois da má vontade da comissão, de exigência dos comissários, de impossibilidade de organizar bons concertos — e, finalmente, de déficits, de calúnias, e desgostos…

Em 1895, já não é somente a falta de dinheiro o que atormenta o espírito do infeliz. Dois novos sofrimentos o torturam: a moléstia do filho (Carletto, que veio a morrer  tuberculoso) — e a moléstia própria, o início da medonha enfermidade que o matou.

A carta de 2 de fevereiro de 1895 (Milão) é um largo brado de desespero: “É triste! É doloroso! É caiporismo do teu compadre! É até cômico: gastar o último vintém, dis­parar o último cartucho, para, no fim, ficar prisioneiro da feroz inimiga: a Miséria! Mas ainda não disparei o último cartucho — o crédito de que ainda gozo nesta terra es­trangeira. Ando aumentando dívidas, mas, seja como for, hei de defender o meu filho, custe o que custar!… Carletto não apresenta melhoras… Não conto mais as consultas dos médicos desde o ano passado, nem as contas da botica… Imagina, compadre, como vou eu para o Pará!“.

Nessa carta, há ainda esta linha terrível, em que aparece a idéia do suicídio: “Mancinelli (o maestro que se suicidou no Rio) era em vida um ‘joão-fera’, um bicho-brabo intra­tável — mas, por fim, deu um exemplo imitável…“.

Carletto ficou em San Remo, cada vez pior, Ítala ficou em Milão — e Carlos Gomes veio ao Pará (primeira viagem): já então, o cancro progride: “A minha saúde [carta de 12 de julho de 1895, escrita a bordo] tem sorrido muito ultimamente. A antiga moléstia da boca piorou… A inflamação da garganta também se tem agravado — e isso quer dizer que o clima do Pará não é para mim. Mas que fazer? No Rio, não me querem, nem para porteiro do conservatório! Em Campinas, e em São Paulo, idem! No Pará, porém, querem-me de braços abertos… Não me querem no Sul? Morrerei no Norte: tudo é terra brasileira… Amém!“.

De todas as calúnias de que foi vítima em vida o grande artista, cuja estátua se inaugura hoje, a que sempre mais lhe doeu foi a que se levantou sobre a sua falta de patriotismo.

Dizia-se comumente, sempre que se queria magoá-lo, que Carlos Gomes se havia naturalizado italiano, e que impusera aos filhos a nacionalidade italiana; e até se apre­sentava como uma demonstração do seu antibrasileirismo a escolha dos nomes que ele dera às duas crianças: Carletto e Ítala…

A correspondência esclarece esse ponto, e destrói triun­falmente a calúnia.

Em 1º de dezembro de 1891, escrevia o maestro, de Milão, ao seu amigo:

Fui derrotado em Pesaro, onde me apresentei candidato ao lugar de diretor do conservatório.

O motivo da minha derrota é simples e natural: não sou italiano. Se fosse ao menos naturalizado!… Eis aqui, compadre; sem que eu a procurasse propositalmente, posso hoje dar a melhor e mais eloquente resposta a todo e qualquer brasileiro (de Manaus a Uruguaiana) sobre as calúnias que me levantavam de ter renegado a minha pátria… Se a imprensa de todo o Brasil quisesse registrar este fato, não faria mais do que um dever de justiça; mas será inútil: a calúnia sempre deixa a catinga.

Outras derrotas posso também registrar, começando pelo Rio de Janeiro, onde nem lugar de porteiro do conser­vatório posso obter, e pela indiferença de São Paulo, Per­nambuco, Pará, Barbacena, e até Campinas, que não res­ponderam às minhas propostas e oferecimentos a respeito da fundação de conservatórios de música!”

Mas há ainda melhor: é o trecho da longa carta, escrita em 12 de setembro de 1895, de bordo do vapor Brasil, entre Pará e Pernambuco:

“[…] Devo agora falar-te de uma nova desgraça a respeito do meu Carletto. A questão é séria e grave, tratando-se do recrutamento militar. Logo que nasceu o Carletto (29 de janeiro de 1873), registrei-o no consulado-geral em Gênova declarando-o brasileiro. Aos vinte anos, recebi aviso do Ministério da Guerra italiano, decla­rando que meu filho estava na lista da soldadesca [sic] para 1895, por ter nascido em Milão, ainda que de pai estran­geiro. Protestei, e houve troca de ofícios entre mim e o Mi­nistério da Guerra em Roma. Afinal, o ministério italiano mandou-me um ultimatum, dizendo que competia ao meu rapaz, aos 21, declarar qual a nacionalidade que então entendesse adotar.

Antes de deixar a Itália, este ano, tratei do assunto na Repartição do Recrutamento, em Milão (visto a ausência de Carletto, por motivo de grave moléstia). Responderam que tudo ficaria em regra logo que o recruta se apresentasse… Parti, portanto, da Itália, tranqüilo a respeito do melindroso assunto, certo de que o Carletto, voltando a Milão, chegaria a tempo… Não, senhor! O Carletto, voltando a Milão,  teve o aviso do chefe do recrutamento, declarando-o soldado de primeira categoria, isto é, obrigado por três anos, visto não ter feito em tempo a declaração da nacionalidade estrangeira, à qual tinha direito por ser filho de pai brasileiro.”

Felizmente, tudo se arranjou, não sem dificuldade. E, em outra carta de Milão (15 de outubro de 1895), há estas nobres e comovedoras palavras:

És o primeiro a quem escrevo a este respeito… Carletto acaba de receber do governo italiano a declaração formal de ficar livre do serviço militar, por ser considerado estrangeiro. Estrangeiro por quê, pergunto eu? Por ser filho do maestro Carlos Gomes, o qual foi, é, e há de ser sempre estrangeiro na Itália. Este fato é mais uma resposta aos meus inimigos do Brasil, resposta a todos quantos até hoje duvidam da minha leal­dade como brasileiro legítimo e patriota! Carletto está enfim livre da farda italiana; quem o livrou foi o governo do Brasil, ou foi a legalidade?… Se eu fosse naturalizado italiano haveria governo no mundo capaz de salvar o meu filho? Compadre, a mentira tem pernas curtas; por mais que possa correr, acaba por ser alcançada pelas investi­gações da verdade… Carletto está agradecido a Carlos de Carvalho, ao nosso ministro em Roma, aos deputados que o recomendaram ao nosso governo; Carletto agradece tam­bém a ti e ao compadre Castelões, pelas visitas feitas ao ministro das Relações Estrangeiras no Rio; mas Carletto agradece ao mesmo tempo a seu pai, por ser brasileiro, fiel à sua pátria…“.

Agora, a última carta da coleção.

Carlos Gomes vai de novo partir de Milão:

A 1º de abril [carta de 18 de março de 1896] conto embarcar em Lisboa para o Pará, onde fui positivamente nomeado dire­tor do conservatório da capital. O meu emprego poderá durar de dous a três anos… Tudo é possível! É possível tam­bém que eu não continue por muitos meses ainda neste mundo… Não imaginas o estado gravíssimo da minha boca: a garganta e glândulas sempre inflamadas; no centro da língua uma ferida enorme… Há muitos meses que perdi o paladar; o meu alimento normal é leite e miolo de pão, nada mais. Qual é o homem que, neste estado, pode ver o futuro cor-de-rosa? Ninguém imagina o heroísmo com que eu suporto a minha situação. Acrescenta a este estado físi­co insuportável a agitação moral… Depois do Colombo, não consegui terminar trabalho algum principiado“.

E, mais adiante:

“[…] Bastava-me um emprego, o qual finalmente acabo de obter no Pará. Este fato me consola bastante. Pará é terra brasileira… Eu sempre desejei finalizar a luta na minha terra!“.

E agora, o epílogo, o último passo doloroso da longa vida de torturas… E uma carta, já não do maestro, mas de um amigo de sempre:

Pará, 26 de maio de 1896. Meu caro… Desde o dia 14, o Pará hospeda com fidalguia Carlos Gomes, havendo da parte do governador Lauro Sodré toda a solicitude. Infelizmente, a junta médica, chefiada pelo dr. Pais de Carvalho, julga-o inteiramente perdido. É horrível o sofrimento do nosso maestro: a língua, inteira­mente tomada, dificulta a fala, e só lhe permite alimentar-se com leite e caldo. Como ele é teu compadre e amigo, prepara-te para tudo quanto possa haver de mais desagradável…“.

De fato, poucos meses depois, a 11 de julho de 1896, o grande artista morria. O emprego, tão ardentemente ambicionado, chegara tarde; o pão, tantas vezes pedido, já não achara boca com que o pudesse comer…

Não nos revoltemos contra essa dura fatalidade, que pesa sobre o destino dos homens de gênio — desconheci­dos e desprezados em vida, e glorificados depois da morte. Na terra, sempre existiram cigarras e formigas. A cigarra nasceu para cantar, e a formiga nasceu para enriquecer: como se há de evitar que cada uma delas cumpra a sua mis­são, sujeitando-se às desvantagens ou gozando as vantagens que nessa missão estão compreendidas?

A formiga tem mais dinheiro, mas a cigarra tem mais glória. Infelizmente, a glória não é cousa que os prestamistas e os agiotas aceitem como penhor de qualquer empréstimo…